Energia descentralizada, a "terceira revolução industrial"

25-04-2010 12:18

O paradigma energético do futuro tem a produção descentralizada como um dos seus principais trunfos. Mas ainda falta investigação para que esta tendência se generalize.

 

Foi há 127 anos que, em Nova Iorque, se construiu a primeira central eléctrica no mundo, que produzia tanto calor como electricidade para os edifícios em seu redor. Eram os primeiros passos da produção descentralizada. Se as primeiras centrais eléctricas forneciam apenas aos clientes próximos da fonte de produção e as primeiras redes de distribuição funcionavam em corrente contínua, anos mais tarde, surgem as redes eléctricas de corrente alternada, dando a possibilidade de se transportar a energia eléctrica até distâncias mais afastadas.  

Na última década, com os avanços da tecnologia na área da produção eléctrica, e devido ao papel que as questões ambientais passaram a assumir, a produção descentralizada ganhou um novo fôlego. E a tendência é para que continue a crescer, até porque todos os edifícios construídos depois de 31 de Dezembro de 2018 terão de produzir tanta energia como aquela que consomem, de acordo com a adenda feita, em Abril, à Directiva Performance Energética dos Edifícios 2002. O Parlamento Europeu quer, igualmente, que os Estados-membros fixem metas para os edifícios existentes, ou seja, percentagens mínimas de edifícios que deverão ser "zero energia" em 2015 e em 2020.

A União Europeia (UE) surge, assim, como um mercado com um elevado potencial, visto que o consumidor europeu «já está muito sensibilizado para a realidade energética, sobretudo devido ao seu elevado preço e à questão da dependência, ou falta de segurança no abastecimento», aponta Carlos Laia, do Centro de Estudos Económicos em Energia, Transportes e Ambiente (CEEETA), já para não falar que tem à disposição «500 milhões de cidadãos, um mercado único, e razoável potencial de energias renováveis».  

Com efeito, são vários os Estados-membros que têm apostado na produção descentralizada como forma de reduzir perdas nas redes de distribuição, de diminuir a dependência externa e de dar ao consumidor um papel mais activo. Alemanha e Espanha são alguns dos líderes nesta área, mas Itália e Grécia também começam a ganhar terreno neste novo paradigma energético. A produção descentralizada de energia ou microgeração, entendida como geração de energia (eléctrica e eventualmente também térmica) pelo próprio consumidor, utilizando equipamentos de pequena escala, e com a possibilidade de os excedentes de energia eléctrica poderem ser vendidos à rede de distribuição, afigura-se como a grande tendência futura.

A "terceira revolução industrial"

O papel de cada pessoa será cada vez maior nesta mudança. Conhecida é a visão do economista Jeremy Rifkin que propõe uma estratégia pan-europeia de geração de energia em pequena escala e de redes inteligentes que tomem toda a gente num parceiro energético. Para o presidente da Foundation on Economic Trends, a Europa tem a capacidade para assegurar a liderança de uma nova era, marcada pelo que designa de "terceira revolução industrial", revolução essa que assenta em três pilares. O primeiro está relacionado com as formas de energia renovável: solar, eólica, hidroeléctrica, geotérmica, ondas do mar e biomassa.

O segundo pilar assenta na capacidade de armazenamento. A UE está a investir nas energias renováveis e estabeleceu a meta de 20 por cento para 2020, contudo, para maximizar o recurso a energias renováveis e minimizar custos, será necessário desenvolver métodos de armazenagem que facilitem a conversão de fornecimentos intermitentes dessas fontes renováveis em activos seguros e duráveis. As baterias têm essa capacidade limitada, mas o hidrogénio é o meio universal que "armazena" todas as formas de energia renovável para assegurar a disponibilidade de um fornecimento estável e seguro para a geração de energia e para o transporte.

O terceiro pilar envolve a distribuição. A ideia é gerar energia renovável, localmente, e submetê-la a uma rede inteligente e integrada que permitirá a cada Estado-membro produzir a sua própria energia e partilhar os excedentes com os parceiros, contribuindo para a segurança energética.

Mas a visão de uma rede europeia de energia descentralizada, alimentada por milhares de sistemas electroprodutores de pequena escala, ainda está longe de ser realidade. Contudo, lembra Miguel Matias, CEO da Self Energy, quando Bill Gates deixou a Universidade de Harvard para fundar a Microsoft com o amigo Paul Allen, em 1975, também enfrentou a descrença dos cépticos que questionavam a necessidade de as pessoas comuns precisarem de um computador em casa.

Também Carlos Laia acredita que a visão de Rifkin é muito próxima da realidade futura da energia, em particular na concepção de que cada consumidor é também produtor de energia. Contudo, «os modelos actuais necessitam de mais investigação, não só de engenharia, mas também de novos modelos políticos, económicos e de organização do mercado da energia», avisa.

A nível de investigação, alerta o especialista, as redes eléctricas «precisam de evoluir no sentido de serem dotadas de mais "inteligência"». Além o custo de algumas tecnologias terá de descer mais, até porque algumas ainda não atingiram o seu estado de maturidade. «É preciso não esquecer que podemos ter microgeração com gás natural, processo de maior eficiência na produção combinada de calor e electricidade. O mais difícil será montar enquadramentos legais e políticos em que se vençam barreiras não técnicas, e que, encorajando a alteração do paradigma, não caiam em situações que levam a práticas especulativas», destaca Carlos Laia.

Por outro lado, a alteração do paradigma para a descentralização/microgeração poderá ser catalisada pelo aparecimento do carro eléctrico. Com efeito, «poderemos em certas circunstâncias dispor de um meio de armazenar energia eléctrica produzida por um sistema renovável, em situações em que a rede está indisponível ou porque compra energia a preço pouco atractivo», acrescenta. Mas a combinação carro eléctrico/microgeração ainda está por aprofundar no que respeita às possibilidades técnicas e económicas que se deparam.

Portugal atrasa-se na minigeração

Em Portugal, a produção de energia eléctrica através de instalações de pequena escala utilizando fontes renováveis de energia ou processos de conversão de elevada eficiência energética, pode contribuir para uma alteração do panorama energético português de forte dependência do exterior.

Em 2005, por exemplo, enquanto os países europeus apresentavam uma dependência energética de cerca de 50 por cento, o território nacional registou uma dependência energética de 88 por cento, segundo dados do Eurostat. O cenário nacional assenta, sobretudo, em importações de fontes primárias de origem fóssil, o que, perante as flutuações dos preços internacionais destas fontes, tomam o País bastante vulnerável em termos energéticos.

Um cenário que pode mudar. Para Miguel Matias, o modelo mais eficiente é o da produção descentralizada, junto dos locais de consumo energético, uma vez que produzir energia junto ao local onde ela é consumida reduz custos de transporte e distribuição, permite autonomia e redundância energética e reduz perdas.

Um estudo elaborado pelo Instituto de Engenharia de Sistemas de Computadores (INESC Porto), para 2005, mostra que uma injecção de energia eléctrica, proveniente de unidades de microgeração, de 10 por cento da potência injectada no pico de consumo da rede de distribuição obtém uma redução nas perdas de energia na rede de cerca de 14,89 por cento. Por outro lado, a instalação de geradores de pequena dimensão localizados junto dos pontos de consumo permite adiar investimentos no reforço das infra-estruturas de rede e, ainda, aumentar a fiabilidade do fornecimento de electricidade.

As redes de baixa tensão a que se ligam estes equipamentos terão, potencialmente, cada vez mais protagonismo, podendo através do recurso a tecnologias de informação vir a afirmar-se como células activas, permitindo uma gestão integrada de microgeradores e cargas, de forma a obter uma maior eficiência económica e energética, e permitir autonomia local em caso de falta da rede pública. Esta panóplia de novas tecnologias, aliada a um novo conceito de gestão das redes eléctricas, poderá vir a afirmar-se como a pedra de toque de uma mudança de paradigma do sistema energético nacional e internacional.

De acordo com João Peças Lopes, investigador do INESC Porto, em 10 a 20 anos, cinco por cento da electricidade consumida em Portugal deverá basear-se em sistemas de produção descentralizada de energia, em pequenas potências. As tecnologias com maior potencial, considera, são a solar fotovoltaica e a micro-eólica.

Porém, Portugal está, na perspectiva de Miguel Matias, a perder o comboio da mudança. «O grande passo que falta dar, e em relação ao qual já estamos atrasados, não é o da microgeração, mas o da minigeração (geração de energia em edifícios)», frisa responsável, acrescentando que Espanha já permite avançar com projectos de dois M W e Portugal ainda está nos 3,68 kW. Apesar de o País não estar mal, «poderia estar bem melhor», conclui, lembrando que, apesar de o território nacional ter sido dos primeiros a lançar os temas das grandes eólicas, saltou dos grande projectos para os micro-projectos, esquecendo os projectos intermédios.

Água e Ambiente, 1 de Setembro 2009

 

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